sábado, 12 de outubro de 2013

E se a morte for uma solução para a vida?

Perdi o meu avô há quase dois anos e a minha avó começou a perder-se desde aí.
Quando moravam os dois juntos, estavam já naquela fase da implicância e de se "aturarem" um ao outro...sem passarem um sem o outro.
O meu avô sempre mais desperto e mais fresco de cabeça, de raciocínio. A minha avó, a mais polivalente em tudo, mas a mais cansada, a mais confusa, que já deixava o fogão ligado e se esquecia de tudo um pouco.
A que caía a meio da noite e já não se levantava, até que a encontrassem no dia seguinte. Uma cabeça cansada, com o dobro da idade que o corpo tinha e tem.
A vida foi generosa com o meu avô, não lhe contou que doença lhe ia dar e quando o cancro apareceu, durou apenas 21 dias e sem dor.
Dizem que quando morremos, perdemos 21 gramas. O peso da alma, a sair de nós.
21 dias, 21 gramas a menos. Curioso, não é?
A minha avó foi tomando consciência aos poucos, mas a demência dela não a permite ter uma realidade como a minha ou outra pessoa qualquer. Vive com os meus pais, está dependente e a chegar aquela fase da vida, que ninguém merece.
Lembra-se de mim, a primeira neta de sangue e das pessoas mais próximas, embora se baralhe nos tempos e nos nomes. Se lhe perguntarmos em que ano está, diz estar em 1982...ano em que nasci.
Quando me responde isso, tento brincar com ela ("Olha que sorte avó, não tens a Troika atrás de ti!")explicando que mesmo que pareça impossível, já estamos em 2013.
Fica sempre admirada e só se acredita nisso, por ser eu a dizer. Confia em mim, diz muitas vezes "És o amor da minha vida" e por cá fico, sem jeito.
O olhar dela foi-se perdendo, foi ficando triste como a noite.
Já quase não fala, dorme horas e horas e senta-se no lugar de sempre à janela, no sofá.
Ainda acha que o meu avô vai entrar, depois de vir de um jogo de futebol. Levanta-se a meio da noite para fazer peixe cozido e pergunta-me porque estou longe. E os olhos nunca mudam...nunca.
Cada vez mais triste, cada vez mais sem vida.
Uma das vezes que lhe perguntei porque tinha um ar tão triste, disse-me "Não tenho motivos para estar contente. Já pedi ao teu avô para me levar, não estou aqui a fazer nada, filha" - e esse, foi dos momentos mais lúcidos que teve.
Amo-a com todo o meu coração, mas sei que partir é o maior desejo dela e não consigo contrariar isso. Sei que para ela, será um alívio, quando esse dia chegar. Quando já não precisar que lhe dêem banho ou lhe ponham uma fralda.
Até eu, numa fase assim, também preferisse ir para outro nível.
Possivelmente, só assim terá sossego e paz.

Talvez a morte seja, por vezes, a forma de sentirmos que a vida não foi em vão. Uma forma de recomeço e de soltar amarras invisíveis que não nos levam a lado nenhum.
Talvez a morte, nestes casos, nos leve a outra vida.

14 comentários:

  1. Olá! Só esqueceste um pormenor, é que ela ouve e sente muitas vezes uma menina, e preocupa-se com essa menina. Muitas vezes pergunta por ela, e reclama que quer preparar o almoço ou o jantar ou qualquer coisa para a menina que "deve estar com fome". E a mãe pergunta-lhe, que menina? não está cá nenhuma menina! Então ela fixa a mãe com aquele olhar confuso e responde: a tua filha!
    Esta é a prova que as luzes se lhe começaram a apagar no ano em que nasceste. Ela diz que a menina tem "dois mesinhos", e como te criou, ainda mantém a preocupação de te proteger .
    É verdade que começa a sentir o peso que a vida lhe está a causar, certamente maior que os cestos do pão que distribuía porta a porta nos anos 60/70. Uma vida dura, não tão dura como a que agora carrega. Sim, porque se lhe perguntar o que preferia, certamente escolheria a vida de "Padeira", e não esta que agora tem, a olhar para nada e a pensar em muito menos.

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  2. Sabes Vânia perdi a minha irmã com 38 anos, o meu pai com 65, o meu marido com 43, a minha sobrinha com 34 e meu netinho com 6 mesinhos, quando o meu marido começou a ficar na fase terminal, eu em 10 dias perdi 14 kg, caiu muito do meu cabelo, cairam muitos dentes, tive um dia qu me caiu 3 dentes completamente inteiros, foi assim que o meu sistema nervoso reagiu e reage, nessa altura quando acreditei que a vida do meu marido estava a chegar ao fim, perdi a vontade de viver, mas tinha e tenho duas princesas, nós três´chegamos a falar que era doloroso demais, mas seria o melhor para o paizinho que estava a sofrer demais, por isso entendo o sofrimento da tua avó.
    A minha mãe que me abandonou está totalmente dependente, mas completamente lúcida, isso dói, mas ela tem uma força enorme para viver.
    Vânia este teu texto comoveu-me demais, acabei por ficar sem saber que dizer, e falei de mim e dos meus.
    Força Vânia e que aconteça o que acontecer, que seja o melhor para a tua avó querida.

    beijinho e uma flor

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    1. Fizeste bem em falar. Eu é que perante a tua história, fiquei sem saber o que dizer :/
      Muitas flores para ti***

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  3. Adorei o teu texto.... sentido, de uma ternura que toca e de uma profundidade que nos deixa a pensar. A avózinha está pronta e quer ir, mas continua agarrada a ti... à sua netinha pequenina. Vai lhe dando os mimos que costumas dar para que, quando partir, vá embrulhada nesse grande amor.
    Obrigada por estes momentos em que te li.
    Beijocas

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    1. Obrigada eu pela visita :)
      Não sou a única neta, somos quatro no total mas ela tem a minha imagem mais vincada, é um facto.
      Beijinhos***

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  4. É das coisas que mais medo tenho na vida, é ver os meus perderem a lucidez ou sentir-me a perder a minha. Mais medo disso que de qualquer cancro.
    Entendo perfeitamente o que dizes. A morte há-de vir buscá-la quando chegar o dia dela. E ela estará preparada.
    Beijinho e força. Para as duas.

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    1. Obrigada :) A preparação dela já foi sendo feita há muito. Acredito mesmo que ela esteja preparada e deseje isso.
      Porque demora tanto tempo esse bilhete de ida?
      Não posso ser egoísta e tenho de encarar que essa partida, seria o fim de muita tristeza para ela.
      Eu, é que nunca ficarei preparada. Mas aceitarei, claro.
      Beijinhos

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  5. E pronto... mais uma lagrimazita. A verdade é que acredito que esta vida deixa de ser vida quando perdemos a chama nos olhos e a alma já não é suficiente para mover o corpo. Acredito haver outro 'tipo de vida' na nossa morte terrena. Mas pergunto-me muitas vezes porque muitos entes queridos nos são arrancados em segundos (como o meu avô pouco antes de eu me casar) e porque outros parece definhar aos nossos olhos numa vida dependente e infeliz e sofrer por ainda cá estarem tanto tempo. Claro que há que aproveitar enquanto ainda cá estão. Até porque me pergunto, se não passaram, é porque não estarão preparados, certo? Ou ainda têm um papel a desenrolar aqui. Ou simplesmente falta uma aceitação de uma condição, ou uma simples despedida que ainda não se consumou, para que partam em paz... Mas por outro lado... enfim. Será a morte o início de outra vida? Ou a dignificação dessa vida que 'finalmente' se apagou (para quem tanto sofre)???

    Um beijinho e xi apertado.

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    1. Eu acho que sim, que é o início de algo brilhante que a vida terrena já ofereceu um dia...
      beijinho***

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  6. Concordo com o que escreveste ao finalizar.

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  7. Há questões tão difíceis, tão confusas, tão contraditórias.. ser a morte a solução para a vida? já viste as voltas que a nossa vida dá? concordo tanto contigo! às vezes somos egoístas, queremos que o outro cá fique, por nós, não por ele. será isso certo? percebo tão bem o que sentes! Parabéns pelo post! adorei. "um abraço fechado"

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    1. Olá!!! Por aqui?
      Bem vinda á Sala e que te sintas sempre bem aqui :)
      Beijinhos

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