terça-feira, 17 de junho de 2014

Quando não são as tatuagens que marcam...

Gosto de tatuagens. Discretas, simples e pequenas mas gosto. Demorei anos e anos a fazer a minha, só aos 31 me decidi porque tive quem me acompanhasse e lá fui eu. Doeu para caneco, só não chorei por vergonha, mas não me arrependo.
Não fiquei viciada nem com o bichinho das tattoos, mas estou seriamente a pensar fazer outra, para desgosto da minha mãe.
Se tudo for feito com bom gosto e bom senso, tudo é aceitável. E mesmo quando os nossos olhos são invadidos por corpos todos grafitados, não temos o direito de julgar ninguém. Uma pessoa tatuada tem de andar na droga? Tem de estar ligada ao álcool ou a doenças contagiosas? Têm de ser delinquentes?

Partilho com vocês, o testemunho de um jornalista, que dá que pensar...ainda há muito preconceito neste país.


"No processo de liquidação do Serviço Nacional de Saúde em curso, alguns hospitais aqui da Parvónia vão-se destacando em casos que só não podem ser designados como sendo de mera incompetência porque são intencionais – ou seja, determinados pelas administrações, no cumprimento de ordens vindas «de cima» –, mas também de pura negligência médica e…

E, pior ainda, do mais revoltante fascismo social. Nisso, dando razão a Michel Foucault, quando o filósofo apontava este tipo de estabelecimentos de saúde como espaços concentracionários, não muito diferentes das prisões e dos quartéis.

Um desses hospitais campeões em incompetência planeada, negligência e fascismo social é o de Cascais. Surpreendidos? Não fiquem: Cascais é terra de Tios e Tias e por aqui está-se a revalorizar cada vez mais essa coisa a que se chama Estatuto Social.

Ou seja, se sais da norma de comportamento estabelecida pela burguesia bem instalada – e, com a crise, enriquecida, porque a desgraça coletiva anda a beneficiar esta gente de Cascais como nunca antes, com um visível aumento do número de Ferraris e Lamborghinis a circular pela Marginal –, bem podes sofrer sérias consequências por isso.

Foi agora o que aconteceu com a Lipa, namorada do meu filho Lourenço. Triste decisão a deles de terem deixado a sua casa em Lisboa a fim de virem morar para Carcavelos. Poucos dias depois de se terem mudado e já estão a comer pela calada.

Eu explico: acontece que a Lipa é body piercer num centro comercial. Logo, tem tatuagens da cabeça aos pés. Tal como o Lourenço, tatuador e ele também body piercer, com atividade profissional em Carcavelos.

Acontece também que a Lipa está com uma infeção urinária que tem resistido à medicação, sendo que esta, como se tal não bastasse, lhe provoca grave indisposição. Cheia de dores logo após a mudança de casa, foi de madrugada, acompanhada pelo Lourenço, ao Hospital de Cascais.

E o que encontrou neste? Logo para começar, o pior dos tratamentos por parte da equipa médica das Urgências, que devido ao seu aspeto físico (tatuagens, piercings, roupas, etc.) logo a determinou como toxicodependente (não é, escusado seria dizer) e a tratou como nem se tratam os animais.

Tiraram sangue à Lipa, pensando esta que para verificarem o estado da sua infeção. Mas não, não foi esta a análise a que se procedeu, mas à de HIV. Os médicos partiram do preconceituoso princípio de que, se a jovem estava tatuada, era por ser uma marginal com sida.

A realização da análise que era realmente necessária foi por eles recusada. Tem de ir ao hospital onde foi diagnosticada, o de S. José – disseram eles –, para trazer as análises que já realizou e levá-las ao médico de família. Que a Lipa agora não tem, precisamente porque mudou de residência e de concelho.

Voltou para casa sem assistência médica, às dores nos rins e à febre alta se acrescentando a dor da humilhação. Apenas porque, simplesmente, além de cumprir as ordens ministeriais de não fazer despesas, o Hospital de Cascais não gostou que ela não tivesse simplesmente uma borboleta na omoplata direita, como é habitual entre as dondocas locais que se divertem a mostrar os bonecos respetivos nas partys.

No dia seguinte o Lourenço teve de a deixar sozinha para se deslocar ao Hospital de S. José a fim de, na sua inocência de jovem, pedir as tais análises. Em Lisboa disseram-lhe o que vocês já devem estar a suspeitar: que teria bastado ao Hospital de Cascais um pedido formal para eles imediatamente lhes passarem os dados.

Explicaram: esse tipo de informação passa-se de hospital para hospital, de médico para médico. Não lhe posso dar a si as análises, Cascais é que tem de as solicitar. O facto de não o terem feito só revela má vontade, disseram ao meu filho.

Até que o casal se meteu a caminho, outra vez, do hospital, mas desta vez com a minha companhia, para garantir que não fossem recebidos novamente como cidadãos de segunda. Enfim, de nada lhes valeu a não ser eu chamar uns nomes a quem estava por perto e apontar tudo o que estava a suceder no Livro de Reclamações.

Os argumentos eram, segundo a enfermeira da Triagem, de que «os sistemas informáticos dos dois hospitais são incompatíveis» e, segundo a médica que atendeu a Lipa, de que «não temos contactos com S. José», como se nunca tivesse sido inventado o telefone.

Mas olhe que você está melhor, comentou a dita clínica à rapariga. Melhor? Mas melhor com que termo de comparação, se a única análise que ela tinha à frente era a da sida?

Pois, se ainda tinham dúvidas de que este Governo tem por objetivo destruir o sistema de saúde público, e se não queriam acreditar que o fascismo está aí outra vez a definir quem é e não é socialmente aceitável, aqui fica uma história – deve haver muitas outras – a provar o contrário.

Tens tatuagens à vista? Pois não vás ao Hospital de Cascais se não quiseres ver a tua dignidade espezinhada. Por ali não se pratica nem humanidade, nem o juramento hipocrático, nem o que é suposto que o SNS faça. O que se pratica é a arrogância de um sistema que te esfrega na cara a condenação de que és lixo.

A Lipa lá ficou na cama, a chorar de dores e de raiva. E eu aqui estou a fazer a única coisa que (ainda?) posso fazer: contar o que aconteceu."




Rui Eduardo Paes
Jornalista cultural e crítico de música

Enfim...

11 comentários:

  1. Eu também quero fazer uma tatuagem um dia, não tem que ser muito grande mas é algo que conta uma história, um marco importante na minha vida, é assim que eu as vejo(as tatuagens). Embora ainda haja o preconceito e pensamentos errados em relação ás mesmas, e quem diz tatuagens diz rastas, grafitis, piercings,... e a lista continua! Isto infelizmente é o mundo que temos =/
    Beijinhos querida*

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    1. Há uma mania parva de rotularam as pessoas, que nunca vou perceber...
      beijinhos

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  2. Eu não quero fazer tatuagens, eu não gosto de corpos tatuados, mas eu ABOMINO o preconceito! E este relato deixou-me a ferver...tratassem assim filha minha e acho que tinha sido preciso chamar o INEM...para o médico!!!! Que raiva.

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  3. Não me acho capaz de fazer uma tatuagem porque tenho pânico de agulhas. Mas, se assim não fosse, há uma que gostaria de fazer, por significado especial que gostaria de eternizar.
    Contudo, não sou o maior fã de tatuagens. Talvez porque acho que pouca coisa na vida pode ser considerada definitiva, as coisas mudam, as nossas perspectivas da vida também. Para além de que, numa mulher, gosto mais de um corpo sem tatuagens. Ou vá, quase inexistentes (uma ou outra mais pequenas, por exemplo).
    Mas não vejo a tatuagens com preconceito, e tal como a Suri, este tipo de relatos deixam-me a ferver!

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    1. Sim, estes casos são desumanos :/
      percebo-te em relação ás tatuagens e sou adepta dessas quase inexistentes.
      Em relação ao ser definitivo, há coisas que são para sempre e nunca mudam...as minhas três mini estrelas, sou eu e os meus pais :)

      beijinho**

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    2. Não muda o significado da tua tatuagem, pelos motivos que apresentaste. Mas pode mudar a tua perspectiva do teu corpo ;) lá está, é sempre algo muito relativo...

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  4. Que situação horrível! Se fosse preciso aqui estava mais um a juntar-se ao protesto contra o hospital!
    Bjs

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  5. Enfim, uma vergonha mesmo! Vou lutar todos os dias na minha profissão para nunca deixar que coisas como estas aconteçam novamente!

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